quarta-feira, 23 de abril de 2014

CANEJA DE INFUNDICE

Um pitéu só para corajosos, no preparar e no comer...

Não, não fiz esta receita mas achei muito curioso.

Pesquisava uma receita numa colecção de livros de culinária, cada volume dedicada a uma região de Portugal ("Cozinha de Portugal - Estremadura" de Maria Odette Cortes Valente, publicados há muitos anos pelo Circulo de Leitores) quando me deparei com esta descrição, que embora longa, recomendo a sua leitura e se forem homens/mulheres de coragem confeccionem e partilhem comigo a foto do produto final porque não encontrei registos fotográficos do mesmo.

"Por ser confeccionado de modo tão característico, tem o privilégio de ter versos a si dedicados. Aqui estão dois:


"É um prato merecedor
de vinho com boas regas
Está fora de qualquer hipótese
Ser comido por piegas.

O nosso prato de caneja
é gastronomia pura
Pois só pode ser comido
por gente de barba dura" in "Junta de Freguesia da Ericeira"

Acrescento o significado de infundice "Barrela, ou lixívia feita de urina, na qual se põe de molho a roupa muito suja e encardida, para posteriormente ser lavada com mais facilidade." in Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. E já agora, por curiosidade, veja no final do documento a minha nota sobre cação que encontrei igualmente neste dicionário. Fantástico o nosso mundo!

Apesar de nunca ter ouvido falar, pela descrição confesso que não tenciono passar pela experiência nem de confeccionar, nem de comer (a não ser que não me digam!).

É de facto um interessante registo da história gastronómica de uma das belas regiões de Portugal, Ericeira, terra de pescadores! 

Transcrição integral a partir do livro acima mencionado e que foi cedido auto pela Câmara Municipal da Ericeira:

Preparação do peixe e cozedura

Trata-se de um peixe da família do cação, com característica de que só os conhecedores se apercebem facilmente. O tamanho ideal é de cerca de 60 centímetros, não tendo a preferência dos apreciadores o peixe de grandes dimensões. A caneja é preparada para cozinhar partindo-a em postas separadas na espinha e ficando todas presas ou ligadas pelas barrigas ou ventiejas. Em seguida é lavada (de preferência com água do mar limpa), salpicada com um pouco de sal e embrulhada no estilo de múmia, primeiro com trapos brancos entalados nos cortes das postas, para absorverem a exsudação  do peixe, e depois com uma serapilheira. Seguidamente é posto numa casa escura sem janelas e durante 5 dias  deixa-se "curtir". Passados estes dias, desembrulha-se o peixe e põe-se ao sol cerca de 15 minutos, tendo-se previamente retirado os trapos brancos já usados. Embrulha-se em novos trapos, repetindo a operação "múmia". Nesta altura já se lhe nota um forte cheiro amoniacal. Já vão rareando as pessoas que sabem fazer toda esta operação a preceito. A operação final consiste em pôr novamente o peixe na casa escura, de onde sai directamente para ser cozinhado. a duração do curtimento total é variável, consoante a preferência e capacidade gastronómica do apreciador. Se a caneja é destinada a iniciados ou a "amadores", o prazo total do curtimento não deverá exceder oito dias. Com um período superior a estes oito dias, a caneja é considerada como sendo para apreciadores "profissionais", tendo interesse referir aqui dois aspectos (e consequências) desta situação, pois o peixe nestas condições faz com que o azeite fique branco quando lhe cai em cima e, ao pôr-se uma garfada de peixe na boca, este desprende uma forma de gás que provoca um ruído ligeiro e a oclusão das fossas nasais no céu-da-boca. Passado o período (variável) do curtimento, o peixe é cozido separado das batatas, porque estas ficam negras quando o são em conjunto. O prato deve ser temperado com bastante azeite e os apreciadores não usam vinagre, nem sequer nas batatas. Quando bem curtido, o peixe, ao ser partido com o garfo, tem reflexos de madrepérola. Aspecto importante a ter em conta é o facto de o espectro solar impedir o curtimento durante os meses de Verão e próximos, pois a experiência ensina que só se deve fazê-lo entre Outubro e Março, de contrário o peixe fica sem consistência e adulterado. Ao saborear este prato verifica-se que o peixe curtido empresta ao conjunto da refeição sabores exóticos, mas muito agradáveis, pois o pão, as batatas, o azeite e o vinho têm um paladar completamente diferente do habitual. Há apreciadores deste prato que, por graça, lhe chamam a "droga benigna". Pormenor curioso a realçar é que com este prato não há vinho mau: todos sabem bem, tal o poder de transformação deste peixe assim preparado. Outra das suas características positivas é a ausência de digestões pesadas ou difíceis, mesmo quando ingerido em grandes quantidades, ao contrário do que acontece com pratos muito condimentados.

Conselhos ao iniciados na caneja de "infundice"

Ao tomar contacto pela primeira vez com o prato da caneja, o iniciado tem dificuldade em comer, situação que, a nosso ver, tem origem na falta de esclarecimento prévio sobre as suas características. Assim, o cheiro pronunciado do peixe no prato é tão somente amoniacal, sendo perfeitamente suportável, pois não é nauseabundo nem putrefacto. Também deve ser frisado a quem vai comer este prato que não vai saborear nenhum peixe "aristocrático", como o são, por exemplo a pescada, o sável, a garoupa, o cherne e outros. A caneja curtida e cozinhada dá ao conjunto da refeição um toque exótico e muito agradável ao paladar. A nível local temos confirmado que o bom gourmet, a pessoa que conhece cozinhas exóticas, não vira a cara à caneja, mesmo À primeira vez, e sempre que convidamos um estrangeiro ele não a rejeita: aprecia-a.

Origem da caneja de "infundice"

Nas nossas averiguação, de há meio século a esta parte, baseadas unicamente na literatura oral (não encontrámos bibliografia alguma sobre o assunto), nunca descobrimos dados concretos sobre as origens e preparação deste prato. A referência mais remota, também colhida na literatura oral, foi-nos prestada por um nosso familiar falecido com 98 anos cerca do ano de 1950, que nos disse ter conhecimento de que o prata da caneja de "infundice" já se preparava e comia nos tempos de seus pais e avós, também longevos, o que nos dá uma referência recuada no tempo de mais de 200 anos. Há várias hipóteses sobre o caso e uma delas reza que o prato da caneja teria sido trazido por marítimos da Ericeira que aportavam na Gronelândia, onde os esquimós curtiam o peixe deste modo. Existem na Ericeira grupos e tertúlias de aficionados do prato da caneja, notando-se-lhes a constante de serem pessoas da meia-idade para cima e também que são muito avessas a qualquer forma de publicidade do prato, que é uma raridade gastronómica, unicamente existente na Ericeira, aqui deixamos um registo da sua originalidade e virtudes."

E pronto...simples! :)

NOTAS (MINHAS)

Mas na continuação das minhas pesquisas sobre este assunto, e ainda com o bendito dicionário na mão...espécies de cação (43 se as contas não me falharam, sem contar com a simples palavra cação!!!):

Cação-Alecrim; cação-anequim; cação-angolista; cação-anjo; cação-bagre; cacção-baía; cação-baleeiro; cação-bico-de-cristal; cacção-branco; cação-de-areia; cação-de-bico-doce; cação-de-escamas; cação-de-espinho; cação-de-fundo; cação-de-rio; cação-do-raso; cação-do-salgado; cação-fiúzo; cação-frango; cação-galha-preta; cação-galhudo; cação-garoupa; cação-gata; cação-jaguara; cação-lixa; cação-luminoso; cação-mangona; cação-martelo; cação-olho-de-gato; cação-panã; cação-pardo; cação-pena; cação-peru; cação-pinto; cação-ponta-preta; cação-prego; cação-raposa; cação-rodela; cação-sebastião; cação-sicuri; cação tintureiro; cação-torrador; cação-viola!

2 comentários:

  1. achei esta sua descrição altamente cultural,inteligente,perpetuadora da nossa cultura portuguêsa,altamente instrutiva e de maravilhoso gosto,pois se vê claramente a intenção da perpetuação dos usos e costumes do nosso velho e querido portugal,e principalmente de outro tesouro de patrimônio,não só de portugal,mas também do brasil,açores,madeira,angola,moçambique,guiné-bissau,são tomé e príncipe,timor,goa,macau,etc,etc,etc,enfim de todos nós do mundo da lusofonía,viva portugal,viva o brasil,viva os açores,e viva a nossa querida ilha do pau!!!

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    1. Está no meu ser! Adoro pesquisar, saber mais e mais e principalmente partilhar. Muito grata pelas suas palavras que me encheram o coração. Volte sempre e tudo de bom para si e para o seus

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